segunda-feira, 6 de abril de 2015

Prática educativa questiona o sistema e compartilha suas experiências


A disposição em promover transformações sociais encontrou eco e representação nas atividades realizadas pelo Ecoetrix. Em razão disso, no processo de organização de sua Escola Orgânica, o Parquescola enviou três de seus educadores para uma semana de vivencias no Projeto Âncora, de Cotia SP, espécie de representante da Escola da Ponte no Brasil.

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*Por Wender Reis

Um ideal de escola em busca de uma escola ideal (vírgula), para a sua região, para o seu contexto, para as pessoas que dela fazem parte. Quase um arquétipo junguiano, o Projeto Âncora, de Cotia, São Paulo, sugere a escola dos sonhos de adultos que, como eu, passaram a vida escolar sentados em carteiras, assistindo aulas, na maior parte das vezes, desinteressantes. Com uma proposta que rompe com o modelo de ensino convencional, sem quadro negro, uniforme e, menos ainda, aulas expositivas, o Âncora vem provando que o á-bê-cê estéril da organização escolar brasileira pode ser diversificado com boas doses de coragem,combinadas em uma receita de escola interminável. 



Núcleo de Iniciação - Crianças em idade de Educação Infantil em seu primeiro contato com a metodologia proposta



Para conviver e sentir essa escola na prática, três educadores do Ecoetrix Parquescola, incluindo a mim, vivenciaram o Âncora por uma semana. A experiência idealizada pela Campanha de Financiamento Coletivo que, entre outros objetivos, teve o propósito de realizar uma “Vivência Transformacional” na escola, segue descrita neste artigo, não como um diário, e sim um diálogo entre impressões.


Um laboratório disposto a acolher intrometidos. É o que se propõe a fazer o Âncora. Alojados por uma semana, o nosso roteiro diário de experiências nos encaminhou para o ponto de partida: a necessidade de criar escolas vivas. Nossa incursão encontrou pares que, como nós, queriam participar na prática do acontecimento de uma escola nova. Ao todo, éramos 6 que, além de experiências e inclinações similares, compartilhamos o desejo por uma educação mais plural e participativa.






Grupo de educandos e educadores realizam pesquisa de campo em uma comunidade próxima 



Nossa primeira experiência formal com a escola foi, não por acaso, um passeio guiado por duas alunas, I e G, que nos apresentaram a estrutura física do projeto. Nossa ansiedade fez parecer que as primeiras horas ali já seriam as últimas, de tantas perguntas que dirigimos as duas. Desde o início, busquei colocar questões de cunho subjetivo, pois sempre me interessou mais entender como se sentem as pessoas que vivem e promovem diariamente aquela escola em detrimento de como se organizam com seus horários, suas salas, programas e conceitos. Cabe dizer que a sua estrutura física faz inveja a muitas escolas particulares que operam na lógica do mercado por aí. O Âncora também é uma escola particular, mas de utilidade pública, portanto, gratuita, lutou e ainda luta por sua autonomia, estrutural, curricular, regimental e etc. Como ter autoridade sobre suas decisões com o mínimo de interferências externas e o máximo de autogoverno? Vejo essa questão como o ponto central de toda nossa experiência. Como entender? Como promover? Quais as implicações? Enfim. A razão principal de estarmos ali.

Se, enquanto instituição, defendemos valores como solidariedade, colaboração, responsabilidade, é caro aos nossos objetivos uma reflexão permanente sobre a nossa prática. Se é uma expectativa nossa ter uma escola com um currículo personalizado, que respeite e atenda às necessidades individuais de cada estudante, é nosso dever atuar mutuamente com quem se submete aos mesmos valores e objetivos. Logo em nosso primeiro dia acompanhamos, entre outras coisas, uma pesquisa de campo. Em virtude do projeto de um grupo de alunos que querem encontrar soluções para o tratamento da água na comunidade do Recanto Suave, inclusive, favela onde moram alguns, saímos a pé acompanhando a expedição do grupo e do mediador pelo bairro. Visualizamos barracos que desafiam a engenharia, acompanhamos o fluxo poluído do córrego de um rio que é a rede de esgoto de centenas de famílias e falamos com moradores. Uma experiência, sem dúvida, muito rica, para todo mundo. Na volta, passando por um caminho diferente, uma placa do governo federal informa o quê, para quem e quanto irá custar uma obra, até então somente intencionada, de uma unidade do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) na comunidade. Trata-se de um depósito abandonado. Com os portões abertos, o mediador, um ou outro aluno e nós, entramos no espaço que guardava vários entulhos de móveis, aparentemente da prefeitura de Cotia, com muitos pontos de água acumulada, naturalmente, possíveis focos de dengue, vide a epidemia da qual sofre todo o estado de São Paulo, especialmente no mês de março. Logo mais a frente, um condomínio, concluído e abrigando moradores de classe média alta estampa em sua entrada uma placa similar a encontrada na comunidade pobre vizinha. Obra financiada pelo mesmo governo. Para nós, adultos, o impacto é claro e notório instantaneamente. O mediador propõe uma reflexão com os alunos em frente ao condomínio para não deixar a oportunidade passar despercebida. Inquietos, queremos questioná-los, chamar atenção para a desigualdade explicita, encaminhar a discussão para conclusões que apontem para o fato de termos governos, em todas as esferas, que se personalizam. Paira, de certa forma, uma ponta de frustração com algumas respostas obtidas. Esta ali um dilema: questionar sem impor sua opinião ou valor. Uma entre várias implicações da autonomia que queremos disseminar.

Observar o Âncora na busca de exercer a autonomia que defende em seu PPP é mais que, por exemplo, em uma padaria, ver a cozinha através de um vidro transparente, é juntar a cozinha, balcão e clientela ou ao menos tentar. Pois quanto mais organizada uma estrutura, maiores as chances de sustentar seus objetivos. A rigor da lei, embora essa expressão seja ambígua no Brasil, as escolas têm autonomia, mas sua garantia está longe de sugerir autogestão. Ainda falta muita informação por parte das pessoas que devem exercê-la, o que confirma e faz manter a tradição centralista da educação do nosso país. Afinal, autonomia não é um conceito de fácil significação e sua subjetividade exige dos gestores muita discussão e prática para lhe dar vida. O que é percebido nas assembleias constantemente realizadas pelo Âncora. Acompanhamos, logo no primeiro dia, a assembléia de educadores, que lá são entendidos como todo o corpo de colaboradores da escola, desde os serviços gerais aos diretores da ONG mantenedora. Ver explicitadas as demandas estruturais do projeto, as relações interpessoais e a busca por uma gestão horizontal, fator essencial para autonomia escolar foi sugestivo e inspirador. Em suma, é preciso mais gente decidindo e exercendo responsabilidade nos caminhos escolhidos pelas escolas. Autonomia escolar é consequência de empoderamento comunitário, necessariamente.




Aprendizes em oficina de musicalização, a arte como aliada no processo de aprendizado.


E é a fim de estimular essa consciência nos estudantes que o roteiro de estudos, instrumento pedagógico bem conhecido por quem já está familiarizado com a Escola da Ponte em Portugal, parte do interesse do aluno que, na sua condição de aprendiz, é responsável, com o auxílio de um tutor, por gerenciar o seu tempo e atividades. A capacidade de organizar, operar, analisar, construir e propor são competências pelas quais são avaliados diariamente. As mesmas competências, que levadas ao nosso alojamento, provam que nós, figurando como pretendidos educadores, estamos faltosos. Não nos organizamos, por exemplo, quanto à limpeza do espaço onde estivemos abrigados. Nosso banheiro quase se equiparou ao de uma rodoviária mal administrada. Faltou-nos diálogo, para dizer o mínimo. Do alojamento para fora o que se viu durante os dias foi uma escola em construção, uma cultura de democracia e cooperação sendo estabelecida, sem filas, uniformes, civismo hermético ou gritarias de parte a parte ensurdecendo os interlocutores, como é comum em escolas convencionais. Não é gritando mais alto que se pede silêncio no Âncora, é com um gesto humilde de levantar a mão, em silêncio. Propostas simples, não fáceis, que mostram toda a sua riqueza ao sair do papel e se tornar prática diária. Tudo em nome do respeito mútuo, valor estrutural do projeto que tira muitas de suas lições da Escola da Ponte. Respeito que é essencial para a convivência em qualquer espaço, seja em casa, na escola, em comunidade e etc. Conviver, sem o perdão da expressão, é foda. Presenciamos debates em grupos de alunos, de educadores, onde divergências foram explicitadas, mas com o respeito pela manifestação da singularidade do outro.

Assembléia de alunos espaço no qual todos podem se expressar


Usar o conhecimento como objeto de partilha e não como instrumento de dominação é um horizonte que perpassa todos os núcleos da escola. Não existem tios, donas, professores. Todos se tratam pelos seus nomes. A responsabilidade é do aprendiz, do educador, dos pais, e assim, o ideal instituído em lei, vai tomando corpo e vida dia após dia. Responsabilidade também é um assunto foda. Quando um grupo de alunos se junta para um projeto que busca soluções para o problema do saneamento e fornecimento de água em seu bairro, eles caminham no sentido do empoderamento da situação, responsabilizando-se por aquilo que é um incômodo. Eis aí mais uma inspiração, pois em nosso alojamento, mesmo cercados de alertas, sou justo em admitir que o consumo de água, em nossos banhos, principalmente, foi além do necessário. E foi justamente o necessário, o ponto em um diálogo entre mim e um aluno. Em determinado momento de nossa conversa, questionei *I sobre o que seria necessário para ser um estudante do Âncora. “Acho que ele precisa ser ele mesmo, sei lá”. Vou me abster de tentar interpretar seu aforismo. Continuando a conversa, perguntei se estava feliz naquela escola, e ao me dizer que não, lamentou ter tanta responsabilidade sobre o seu aprendizado. “Acho que não estou aprendendo muita coisa, o problema é que aqui a gente é que escolhe... em outra escola, pelo menos, tem aulas, professores, sei lá”. É pertinente dizer que *I é filho de uma professora com um policial militar. Antes de uma análise mais cuidadosa do seu caso que, obviamente, não será feita por mim, vale dizer que a desmotivação de *I contrapõe o meu arquétipo junguiano. Cabe também meu pedido de desculpa a seus tutores e educadores, pois sei que o aluno em questão é acompanhado, mas é valida a menção. Tive contato com vários outros alunos, procurei falar bastante com eles, e a desmotivação de *I foi uma exceção. Se for um fato, o que saltou a minha percepção, de que os estudantes, filhos de educadores, são os mais desembaraçados, vale uma reflexão sobre. Fica como proposta.



Momento de reflexão sobre contrastes sociais.


Seria um engano pensar que fomos até o Âncora aspirando nos tornar franqueados do projeto. Constantemente alerta o prof. José Pacheco de que não se trata de fornecer receitas, mas compartilhar possibilidades. Assim como a experiência de um educador deve, por via de regra, servir para enriquecer a dos seus educandos, não para se sobrepor a deles, a experiência obtida no Âncora vem enriquecer a nossa. Não caberia em um artigo a dimensão real de tudo que ocorreu, mas é sempre válido o esforço. O que trazemos de volta é a transitoriedade das relações dialéticas entre as estruturas objetivas e subjetivas, em especial, as pessoas e o currículo, que ainda é uma referência da qual nenhuma escola, incluindo o Âncora, pode desconsiderar. Agora, com mais ingredientes para nossas reflexões e proposições sobre como garantir que as crianças aprendam e trabalhem a criatividade, o espírito crítico, a cidadania, a liberdade, a responsabilidade e as suas autonomias.


Reis (sexto da esq. p/ direita) foi um dos representantes do Ecoetrix que passou cinco dias em Cotia/SP


*Entre 23 e 26/03 o educador vivenciou a transformação proposta pelo Projeto Âncora em Cotia/SP



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